domingo, 21 de março de 2010

Há, de fato, diversas maneiras de ser simples?

Simplificar significa evitar a complexidade e criar uma vida sem mistérios?

Há uma diferença fundamental entre ser simples e ser simplório. Os simples resolvem a complexidade, os simplórios a evitam. Eu conheço pessoas sofisticadas, intelectualizadas, que levam uma vida plena, realizam trabalhos difíceis, apreciam leituras profundas e têm hábitos peculiares. E continuam sendo pessoas descomplicadas. Conheço também pessoas simplórias, com pouca profundidade, que realizam trabalhos repetitivos, que têm poucas ambições, que apreciam rotinas e evitam os sustos de uma vida aventurosa. E mesmo assim são pessoas complicadas, para elas tudo é muito difícil, em geral impossível.
Não, ser simples não significa evitar o complexo, abrir mão da sofisticação, negar a profundidade, contentar-se com o trivial. Ser simples significa olhar com olhos plácidos a esfinge da complexidade e decifrá- la muito antes de correr o risco de ser por ela devorado.
Simplificar significa facilitar o acesso ao que interessa e às mensagens que queremos passar
Há pouco assisti a um vídeo sobre a vida de Picasso, em que ele aparece desenhando a pomba que se tornaria o símbolo adotado pelo Congresso da Paz de Paris. É inacreditável como ele fez aquele desenho, tão simbólico, com tamanha facilidade. Um traço leve e lá estava a pomba com seu ramo de oliveira. Simples como a paz.
O artista nos mostrou isso através de sua genialidade, só que esta foi desenvolvida a partir de longas horas de estudo e dedicação. Antes de ser simples, Pablo Picasso foi complexo, estudou anatomia humana, desvendou Cézanne, deformou faces, criou o cubismo, aprofundou-se em arte africana. Ou seja, levou tempo para fazer coisas simples. Aliás, foi ele mesmo que disse que “leva-se muito tempo para ser jovem”, atribuindo à leveza da juventude a maturidade de ser descomplicado.Não há um paradoxo em construir uma vida simples em meio à vida moderna, cada vez mais exigente?
Hiroshi criou a Ecovila Clareando, uma comunidade autossustentável no interior de São Paulo que atrai gente comprometida com a natureza e com seus valores, como a sustentabilidade, sem a ingenuidade das “sociedades alternativas” de antigamente, mas tendo a simplicidade como filosofia. Ele planta e produz praticamente tudo o que precisa para se alimentar, domina as técnicas de construção ecológica e de produção de energia limpa. Mas não é um isolado, viaja, participa de congressos, dá palestras, toca violão, compõe músicas. E é alegre em tempo integral.
Goldberg é professor da New York University, onde faz pesquisas sobre o cérebro humano, e consegue falar sobre seu funcionamento de maneira compreensível. Escreveu alguns livros, entre eles O Paradoxo da Sabedoria, em que afirma que, apesar do envelhecimento do cérebro, a mente pode manter-se jovem. Seus textos são o melhor exemplo de como se pode simplificar o complexo, pois são sobre neurofisiologia, mas qualquer um entende.
Ele é simples também em sua vida pessoal. Mora a uma quadra do Central Park, e seu consultório é do outro lado da rua. Tem um mastim napolitano chamado Brit que o acompanha por onde vai, e, russo de nascimento, adora comer caviar, que ele consegue bem baratinho no importador, que é seu conterrâneo. O cientista é uma ilha de simplicidade em um mar de complexidade.
Eu não poderia imaginar vidas mais diferentes e, ao mesmo tempo, mais parecidas. O diferente fica por conta do ambiente, o semelhante por conta da postura de vida. Ambos carregam uma leveza própria das pessoas que decidiram não complicar, sem abrir mão de seus desejos, projetos, objetos, pequenos luxos, enfim, da vida normal. Pessoas assim, que fazem a opção da simplicidade, têm alguns traços comuns. Identifico cinco deles:
• São desapegadas: não acumulam coisas, fazem uso racional de suas posses, doam o que não vão usar mais.

• São assertivas: vão direto ao ponto com naturalidade, mesmo que seja para dizer não, sem medo de decepcionar, não “enrolam” nem sofisticam o vocabulário desnecessariamente.

• Enxergam beleza em tudo: em uma flor no campo e em um quadro de Renoir; em uma modinha de viola e em uma sinfonia de Mahler; em um pastel de feira e na alta gastronomia.

• Têm bom humor: são capazes de rir de si mesmas e, mesmo diante das dificuldades, fazem comentários engraçados, reduzindo os problemas à dimensão do trivial.

• São honestas: consideram a verdade acima de tudo, pois ela é sempre simples e, ainda que possa ser dura, é a maneira mais segura de se relacionar com o mundo.

Ser simples, definitivamente, não é abrir mão de nada. É possível apreciar o conforto, a sofisticação intelectual, as artes, o prazer da culinária, a aventura das viagens e continuar sendo simples.
Pois ser simples não é contentarse apenas com o mínimo para manter- se fisicamente vivo, uma vez que não somos só corpo, também somos imaginação, intelecto, sensibilidade e alma. E esta última é, sim, simples, mas não é pequena, a não ser, é claro, que a pessoa queira. Nesse caso, não há mesmo então o que fazer.
Eugenio Mussak